quarta-feira, 3 de agosto de 2016

OPINIÃO

Que Brasil queremos?

Zillah Branco *

As teorias são ferramentas particulares de conhecimentos da realidade existente - fotografias minuciosas do passado e da transformação no presente. Devem ser despidas do "eu acho que..." traduzidas em "verdades absolutas" pela elite "dona da verdade". Uma ganga elitista anula a possível transmissão de uma imagem da realidade.

Uma ganga elitista anula a possível transmissão de uma imagem da realidade. A pergunta sobre "o que queremos" não pode ser respondida apenas pelos intelectuais que debitam as suas formulas, muitas vezes fora de época e sobretudo longe do contexto geopolítico, humano, social e econômico existente. É preciso aprender a perguntar ao povo sem pretender ensinar-lhe a pensar. Pois ele pensa e sabe mais do que diz nas respostas às fórmulas habituais que circulam em uma sociedade criada para a elite.
Guardo lições ditadas por analfabetos com quem convivi na infância: "O Brasil não tem um povo, tem um montão de gente" (Cassiano, pedreiro, filho de escravos); "A vida não é uma escada, é um caminho" (Dona Justina, caiçara); "Quem despreza a gente é porque tem medo" (Brazília, cozinheira doméstica, filha de escravos). A leitura dos livros do Sítio do Picapau Amarelo ensina o que era o Brasil no século vinte, visto de baixo para cima e sem esconder a cultura importada da Europa que dominava socialmente. Monteiro Lobato desnudava o pensamento brasileiro e apontava a crítica necessária para a superação dos preconceitos que eram instrumentos do poder elitista, a começar do racismo, o machismo, a presunção classista, os "donos da verdade" que desconheciam os obstáculos reais. Precisou inventar uma boneca de pano e um de sabugo de milho para sugerir o futuro brasileiro que promoveria mudanças aliado às crianças educadas com liberdade. Misturou mitos europeus com os dos indígenas daqui e mais os que os africanos trouxeram, para abrir as portas a uma cosmogonia onde as diferenças se casam. Apontou um futuro em que, por respeito aos diversos pensamentos, a harmonia seria natural e criativa.
Autores comunistas descreviam os quadros da vida miserável em que viviam os trabalhadores e exibiam a inteligência que a pobreza não destruía, a alegria e o respeito humano criativo, que eram divulgados por artistas geniais em sons e cores. E denunciavam os exploradores que acumulavam riquezas roubadas à natureza e às gentes brasileiras que não se amesquinhavam por "propriedade privada" e "ganância". Gente forte, gente sábia, gente que sobreviveu ao colonialismo e ao liberalismo e agora recusa o neo-colonialismo imperial. Gente que vai construir um Brasil independente.
Os colonizadores europeus trouxeram a cultura e as conquistas sociais alcançadas pelos Estados organizados através dos séculos, mas com a ambição de usar o novo território a favor das suas novas guerras intestinas, do fascínio pelo ouro e joias, com o sonho do poder total. Trouxeram também as contradições que minavam as suas nações, os que lutam pela liberdade, a fraternidade e a igualdade em vários idiomas. As elites tentaram implantar um pensamento congelado, que impedia o raciocínio e ameaçavam com os medos físicos e mentais dos opressores prometendo vinganças terríveis a quem levantasse dúvidas.
A dialética rompeu os grilhões. Era como o saci da mitologia afro-brasileira. Ninguém engole o saber do outro ou repete como papagaio os sons aprendidos. O Deus barbudo e severo e seus emissários santificados assumiram as feições que a cultura de quem convive com a natureza conhece, com sentimentos suaves e considerações éticas que abrem espaço para a harmonia e a alegria, bases para a justiça.
Os abusos nas guerras e no relacionamento doméstico, praticados pela elite, levaram o povo pacífico a criar defesas: surgiram os heróis do povo que lideraram ações libertárias de um Estado embrionário. Os modelos administrativos vindos da Europa desafinavam das necessidades sentidas pelas populações. Eram instituições próprias para a elite e os seus seguidores obedientes.
O modelo de revolução socialista penetrou como o antídoto à cultura da exploração europeia. O Cavaleiro da Esperança criou a guerrilha popular e atravessou o país, do sul ao nordeste, conhecendo a crueza da vida imposta aos povoadores do Brasil e traçando o caminho da luta. Chamou a atenção de pensadores de outros países latino-americanos e dos revolucionários da Rússia Soviética. Foi empossado como dirigente no nascente Partido Comunista. Tinha todas as qualidades de um herói nacional das gentes brasileiras, da maioria analfabeta à burguesia nacionalista. A ideologia aplicada por Lenin, que conheceu na Rússia revolucionária em plena criação de um sistema socialista, casou com os seus sentimentos puritanos cristãos. Pacientemente lutou pela constituição de um proletariado industrial e de um Estado social enquanto os abutres imperiais consumiam as riquezas minerais como lastro dos seus navios carregados com a produção agrícola barata exportada para a Europa.
Poucos intelectuais pensavam a realidade vivida pela maioria brasileira. Sequer observavam e faziam perguntas aos iletrados ou às mulheres que suportam a luta diária pela sobrevivência familiar. Alguns consideravam-se os seus interpretes, referindo teorias de origens diversas, de outras épocas e outras culturas. Interpretavam com os parâmetros da elite. Nos países subdesenvolvidos, colonizados ou dependentes do mercado e da cultura dos mais desenvolvidos, não havia diálogo entre a elite e a população. Os eleitos eram os cidadãos prestigiados "que pensam", apoiados pelos coronéis, por seus obedientes e alienados familiares, e mais o "voto de cabresto" do povo trabalhador. O resto era paisagem.
No Brasil a legislação era liberal, cópia do sistema europeu. Os preconceitos de classe, racista e machista, como pano de fundo na sociedade, pré-estabeleciam os pensamentos dos subordinados ao modelo dos cidadãos socialmente respeitados. As mulheres e os analfabetos eram os complementos naturais. As conquistas em nome da democracia só começam a ter vigência efetiva depois da Segunda Grande Guerra em que o fascismo foi vencido pelos aliados com o exército revolucionário soviético na vanguarda. O socialismo expandiu-se por todo o mundo como a ideologia alternativa ao capitalismo dominante.
A presença de Partidos Socialistas e Comunistas na vida política nacional abriu caminho para os projetos de uma democracia real. A militância progressista misturava diferenças ideológicas - anarquistas, cristãos, trotskistas, estalinistas e mais os que simplesmente defendiam os oprimidos e se rebelavam contra a presunção da elite.
A direita aperfeiçoou os métodos de dominação através da difusão literária, primeiro, e dos recursos da rádio, televisão e cinema, depois. Este tornou-se o instrumento fundamental nas campanhas eleitorais, na propaganda midiática e nos financiamentos privados de shows e mega-festas barulhentas e mediocrizantes. Ao impor um comportamento mecanizado e dominador, sem espaço para contestação, mantêm os que assistem subordinados à onda sonora e psicótica, obedientes à mesma elite que gere o poder financeiro. Uma versão moderna do antigo "cabresto dos coronéis" comanda, agora revestido de subtilezas dos que "fazem as idéias" através da cultura imposta como "moderna tecnologia".
No Brasil, com a Constituição de 1988 (onde no plano jurídico as mais visíveis restrições deixadas pela ditadura foram atenuadas), surge o anúncio da possibilidade de um regime político democrático. As forças de esquerda alcançam vitórias eleitorais, sobretudo a nível da representação municipal onde permaneceram sementes democráticas durante a repressão ditatorial, mas também nas câmaras estaduais e federais, com líderes que sempre lutaram arduamente em defesa das reivindicações populares mesmo fora dos períodos eleitorais. São os verdadeiros representantes da vontade dos oprimidos e da luta por uma transformação do Estado para que deixe de ser manobrado pela elite e realize uma administração democrática dos serviços sociais e econômicos para a independência e desenvolvimento da Nação.
Esta mudança afeta também a produção intelectual ao abrir as universidades a uma camada popular com representantes das vítimas dos mais variados preconceitos. Os temas sobre as diferenças impõem-se ao conhecimento científico, e até à mídia, ganhando as ruas. O direito a pensar com a própria cabeça estilhaçou as coleiras e grilhões. Desapareceu a névoa mental que subordinava a sociedade como um teto baixo de deveres e condições de cidadania.
Só assim pode haver uma produção intelectual integrada efetivamente na história brasileira, alimentada por um conhecimento dos que vivem a realidade suportada pela maioria da população, e as características de todas as regiões do território brasileiro, sem a visão particular e supostamente superior de quem se beneficia dos recursos criados para a elite. As divergências que normalmente surgem nas análises teóricas serão explicitadas diante de fatos reais, com métodos científicos comprovados, e não apenas de interpretações da realidade enredados em conceitos abstratos e intraduzíveis para a linguagem normal da população. O debate será sempre enriquecedor mas não mais como um campeonato de títulos universitários onde vence o que gritar mais alto.
Lula abriu o caminho para uma democracia quando venceu as eleições presidenciais em 2002. Foi um passo histórico que promoveu a participação de 61% de novos eleitores da esquerda e centro, desejosos de um caminho realmente alternativo . No entanto, para isto contou com forças políticas representantes de uma facção nativa da elite, discriminada pelos seus parceiros que assumiam o poder com a ajuda externa do sistema capitalista internacional.
No decorrer dos anos cresceu uma oposição interna às medidas governamentais favoráveis à integração de todos os cidadãos sem distinção de classe ou de etnia, de formação filosófica ou religiosa, de opção de vida. O processo de integração leva tempo para adaptar tanto os agentes sociais como o povo a um convívio igualitário. É uma mudança profunda nas convicções arraigadas pela cultura de uns e de outros, que exige um aprendizado social. Nem todos aguentam manter o entusiasmo na luta coletiva sem compensações individuais. A atração do conforto que cerca o poder é forte e "a carne é fraca" para muitos. Houve traições, insensibilidades e incompetências, que permitiram a sobrevivência de preconceitos contra a ascensão dos mais pobres.
O sistema capitalista aproveitou com a sua vanguarda financeira e uma política terrorista de expansão que enfraqueceu e quebrou a União Soviética provocando um abalo mundial nas organizações revolucionárias. No Brasil o pensamento democrático não foi assimilado pelos governantes da mesma maneira. Uns consideraram a participação popular fundamental para as decisões do Estado servirem os interesses da maioria, enquanto que outros procuraram dar aos mais pobres as condições de consumidores que o sistema estimula com a desigualdade e a corrupção. Os elitistas defenderam os seus privilégios de concentração do capital e das melhores condições de vida. Formou-se a mentalidade golpista para interromper o processo democratizante que ganhara o continente latino-americano e a admiração mundial. Mas, neste clima controverso, Dilma foi eleita por 54 milhões de eleitores. Os que defendem uma melhor distribuição de benefícios do patrimônio nacional e a participação nas decisões do Estado, exigem que os pobres sejam democraticamente integrados como cidadãos com os mesmos direitos sociais.
Vivemos um momento decisivo na história brasileira com repercussão na de toda a humanidade. Até hoje a evolução política só ocorreu com confrontos guerreiros. Ainda temos capacidade para defender as conquistas democráticas com os recursos jurídicos existentes na ONU a partir da definição mundial dos Direitos Humanos e da Paz para o Desenvolvimento Democrático. Haja coragem e brio!

Cientista Social, consultora do Cebrapaz. Tem experiência de vida e trabalho no Chile, Portugal e Cabo Verde.
Fonte: Vermelho

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