Que Brasil queremos?
Zillah Branco *
As
teorias são ferramentas particulares de conhecimentos da realidade
existente - fotografias minuciosas do passado e da transformação no
presente. Devem ser despidas do "eu acho que..." traduzidas em "verdades
absolutas" pela elite "dona da verdade". Uma ganga elitista anula a
possível transmissão de uma imagem da realidade.
Uma ganga elitista anula a possível transmissão de uma imagem da realidade. A pergunta sobre "o que queremos" não pode ser respondida apenas pelos intelectuais que debitam as suas formulas, muitas vezes fora de época e sobretudo longe do contexto geopolítico, humano, social e econômico existente. É preciso aprender a perguntar ao povo sem pretender ensinar-lhe a pensar. Pois ele pensa e sabe mais do que diz nas respostas às fórmulas habituais que circulam em uma sociedade criada para a elite.
Guardo lições ditadas por analfabetos com quem convivi na infância: "O
Brasil não tem um povo, tem um montão de gente" (Cassiano, pedreiro,
filho de escravos); "A vida não é uma escada, é um caminho" (Dona
Justina, caiçara); "Quem despreza a gente é porque tem medo" (Brazília,
cozinheira doméstica, filha de escravos). A leitura dos livros do Sítio
do Picapau Amarelo ensina o que era o Brasil no século vinte, visto de
baixo para cima e sem esconder a cultura importada da Europa que
dominava socialmente. Monteiro Lobato desnudava o pensamento brasileiro e
apontava a crítica necessária para a superação dos preconceitos que
eram instrumentos do poder elitista, a começar do racismo, o machismo, a
presunção classista, os "donos da verdade" que desconheciam os
obstáculos reais. Precisou inventar uma boneca de pano e um de sabugo de
milho para sugerir o futuro brasileiro que promoveria mudanças aliado
às crianças educadas com liberdade. Misturou mitos europeus com os dos
indígenas daqui e mais os que os africanos trouxeram, para abrir as
portas a uma cosmogonia onde as diferenças se casam. Apontou um futuro
em que, por respeito aos diversos pensamentos, a harmonia seria natural e
criativa.
Autores comunistas descreviam os quadros da vida miserável em que viviam
os trabalhadores e exibiam a inteligência que a pobreza não destruía, a
alegria e o respeito humano criativo, que eram divulgados por artistas
geniais em sons e cores. E denunciavam os exploradores que acumulavam
riquezas roubadas à natureza e às gentes brasileiras que não se
amesquinhavam por "propriedade privada" e "ganância". Gente forte, gente
sábia, gente que sobreviveu ao colonialismo e ao liberalismo e agora
recusa o neo-colonialismo imperial. Gente que vai construir um Brasil
independente.
Os colonizadores europeus trouxeram a cultura e as conquistas sociais
alcançadas pelos Estados organizados através dos séculos, mas com a
ambição de usar o novo território a favor das suas novas guerras
intestinas, do fascínio pelo ouro e joias, com o sonho do poder total.
Trouxeram também as contradições que minavam as suas nações, os que
lutam pela liberdade, a fraternidade e a igualdade em vários idiomas. As
elites tentaram implantar um pensamento congelado, que impedia o
raciocínio e ameaçavam com os medos físicos e mentais dos opressores
prometendo vinganças terríveis a quem levantasse dúvidas.
A dialética rompeu os grilhões. Era como o saci da mitologia
afro-brasileira. Ninguém engole o saber do outro ou repete como papagaio
os sons aprendidos. O Deus barbudo e severo e seus emissários
santificados assumiram as feições que a cultura de quem convive com a
natureza conhece, com sentimentos suaves e considerações éticas que
abrem espaço para a harmonia e a alegria, bases para a justiça.
Os abusos nas guerras e no relacionamento doméstico, praticados pela
elite, levaram o povo pacífico a criar defesas: surgiram os heróis do
povo que lideraram ações libertárias de um Estado embrionário. Os
modelos administrativos vindos da Europa desafinavam das necessidades
sentidas pelas populações. Eram instituições próprias para a elite e os
seus seguidores obedientes.
O modelo de revolução socialista penetrou como o antídoto à cultura da
exploração europeia. O Cavaleiro da Esperança criou a guerrilha popular e
atravessou o país, do sul ao nordeste, conhecendo a crueza da vida
imposta aos povoadores do Brasil e traçando o caminho da luta. Chamou a
atenção de pensadores de outros países latino-americanos e dos
revolucionários da Rússia Soviética. Foi empossado como dirigente no
nascente Partido Comunista. Tinha todas as qualidades de um herói
nacional das gentes brasileiras, da maioria analfabeta à burguesia
nacionalista. A ideologia aplicada por Lenin, que conheceu na Rússia
revolucionária em plena criação de um sistema socialista, casou com os
seus sentimentos puritanos cristãos. Pacientemente lutou pela
constituição de um proletariado industrial e de um Estado social
enquanto os abutres imperiais consumiam as riquezas minerais como lastro
dos seus navios carregados com a produção agrícola barata exportada
para a Europa.
Poucos intelectuais pensavam a realidade vivida pela maioria brasileira.
Sequer observavam e faziam perguntas aos iletrados ou às mulheres que
suportam a luta diária pela sobrevivência familiar. Alguns
consideravam-se os seus interpretes, referindo teorias de origens
diversas, de outras épocas e outras culturas. Interpretavam com os
parâmetros da elite. Nos países subdesenvolvidos, colonizados ou
dependentes do mercado e da cultura dos mais desenvolvidos, não havia
diálogo entre a elite e a população. Os eleitos eram os cidadãos
prestigiados "que pensam", apoiados pelos coronéis, por seus obedientes e
alienados familiares, e mais o "voto de cabresto" do povo trabalhador. O
resto era paisagem.
No Brasil a legislação era liberal, cópia do sistema europeu. Os
preconceitos de classe, racista e machista, como pano de fundo na
sociedade, pré-estabeleciam os pensamentos dos subordinados ao modelo
dos cidadãos socialmente respeitados. As mulheres e os analfabetos eram
os complementos naturais. As conquistas em nome da democracia só começam
a ter vigência efetiva depois da Segunda Grande Guerra em que o
fascismo foi vencido pelos aliados com o exército revolucionário
soviético na vanguarda. O socialismo expandiu-se por todo o mundo como a
ideologia alternativa ao capitalismo dominante.
A presença de Partidos Socialistas e Comunistas na vida política
nacional abriu caminho para os projetos de uma democracia real. A
militância progressista misturava diferenças ideológicas - anarquistas,
cristãos, trotskistas, estalinistas e mais os que simplesmente defendiam
os oprimidos e se rebelavam contra a presunção da elite.
A direita aperfeiçoou os métodos de dominação através da difusão
literária, primeiro, e dos recursos da rádio, televisão e cinema,
depois. Este tornou-se o instrumento fundamental nas campanhas
eleitorais, na propaganda midiática e nos financiamentos privados de
shows e mega-festas barulhentas e mediocrizantes. Ao impor um
comportamento mecanizado e dominador, sem espaço para contestação,
mantêm os que assistem subordinados à onda sonora e psicótica,
obedientes à mesma elite que gere o poder financeiro. Uma versão moderna
do antigo "cabresto dos coronéis" comanda, agora revestido de
subtilezas dos que "fazem as idéias" através da cultura imposta como
"moderna tecnologia".
No Brasil, com a Constituição de 1988 (onde no plano jurídico as mais
visíveis restrições deixadas pela ditadura foram atenuadas), surge o
anúncio da possibilidade de um regime político democrático. As forças de
esquerda alcançam vitórias eleitorais, sobretudo a nível da
representação municipal onde permaneceram sementes democráticas durante a
repressão ditatorial, mas também nas câmaras estaduais e federais, com
líderes que sempre lutaram arduamente em defesa das reivindicações
populares mesmo fora dos períodos eleitorais. São os verdadeiros
representantes da vontade dos oprimidos e da luta por uma transformação
do Estado para que deixe de ser manobrado pela elite e realize uma
administração democrática dos serviços sociais e econômicos para a
independência e desenvolvimento da Nação.
Esta mudança afeta também a produção intelectual ao abrir as
universidades a uma camada popular com representantes das vítimas dos
mais variados preconceitos. Os temas sobre as diferenças impõem-se ao
conhecimento científico, e até à mídia, ganhando as ruas. O direito a
pensar com a própria cabeça estilhaçou as coleiras e grilhões.
Desapareceu a névoa mental que subordinava a sociedade como um teto
baixo de deveres e condições de cidadania.
Só assim pode haver uma produção intelectual integrada efetivamente na
história brasileira, alimentada por um conhecimento dos que vivem a
realidade suportada pela maioria da população, e as características de
todas as regiões do território brasileiro, sem a visão particular e
supostamente superior de quem se beneficia dos recursos criados para a
elite. As divergências que normalmente surgem nas análises teóricas
serão explicitadas diante de fatos reais, com métodos científicos
comprovados, e não apenas de interpretações da realidade enredados em
conceitos abstratos e intraduzíveis para a linguagem normal da
população. O debate será sempre enriquecedor mas não mais como um
campeonato de títulos universitários onde vence o que gritar mais alto.
Lula abriu o caminho para uma democracia quando venceu as eleições
presidenciais em 2002. Foi um passo histórico que promoveu a
participação de 61% de novos eleitores da esquerda e centro, desejosos
de um caminho realmente alternativo . No entanto, para isto contou com
forças políticas representantes de uma facção nativa da elite,
discriminada pelos seus parceiros que assumiam o poder com a ajuda
externa do sistema capitalista internacional.
No decorrer dos anos cresceu uma oposição interna às medidas
governamentais favoráveis à integração de todos os cidadãos sem
distinção de classe ou de etnia, de formação filosófica ou religiosa, de
opção de vida. O processo de integração leva tempo para adaptar tanto
os agentes sociais como o povo a um convívio igualitário. É uma mudança
profunda nas convicções arraigadas pela cultura de uns e de outros, que
exige um aprendizado social. Nem todos aguentam manter o entusiasmo na
luta coletiva sem compensações individuais. A atração do conforto que
cerca o poder é forte e "a carne é fraca" para muitos. Houve traições,
insensibilidades e incompetências, que permitiram a sobrevivência de
preconceitos contra a ascensão dos mais pobres.
O sistema capitalista aproveitou com a sua vanguarda financeira e uma
política terrorista de expansão que enfraqueceu e quebrou a União
Soviética provocando um abalo mundial nas organizações revolucionárias.
No Brasil o pensamento democrático não foi assimilado pelos governantes
da mesma maneira. Uns consideraram a participação popular fundamental
para as decisões do Estado servirem os interesses da maioria, enquanto
que outros procuraram dar aos mais pobres as condições de consumidores
que o sistema estimula com a desigualdade e a corrupção. Os elitistas
defenderam os seus privilégios de concentração do capital e das melhores
condições de vida. Formou-se a mentalidade golpista para interromper o
processo democratizante que ganhara o continente latino-americano e a
admiração mundial. Mas, neste clima controverso, Dilma foi eleita por 54
milhões de eleitores. Os que defendem uma melhor distribuição de
benefícios do patrimônio nacional e a participação nas decisões do
Estado, exigem que os pobres sejam democraticamente integrados como
cidadãos com os mesmos direitos sociais.
Vivemos um momento decisivo na história brasileira com repercussão na de
toda a humanidade. Até hoje a evolução política só ocorreu com
confrontos guerreiros. Ainda temos capacidade para defender as
conquistas democráticas com os recursos jurídicos existentes na ONU a
partir da definição mundial dos Direitos Humanos e da Paz para o
Desenvolvimento Democrático. Haja coragem e brio!
Cientista Social, consultora do Cebrapaz. Tem experiência de vida e trabalho no Chile, Portugal e Cabo Verde.
Fonte: Vermelho
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