Neste
domingo (25), a Folha de S. Paulo brindou seu leitor com um artigo
intitulado “Aquarius”, de seu colunista Samuel Pessoa. Para quem não
conhece, trata-se de um economista ligado ao Instituto Millenium e um
dos principais assessores da área na campanha do presidenciável Aécio
Neves (PSDB) em 2014.
Por Glauco Faria
Por Glauco Faria
O
texto escolhe o filme de Kléber Mendonça Filho, que se tornou símbolo
de resistência ao processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff,
para defender a reforma da previdência. A história em si é centrada em
Clara, personagem vivida por Sônia Braga, que luta para permanecer em
seu apartamento no Aquarius, um edifício antigo de poucos andares na
Praia de Boa Viagem, no Recife, alvo de uma construtora que pretende
destruí-lo para fazer ali um novo e suntuoso empreendimento imobiliário.
Pessoa diz em seu texto, em síntese, que “um conjunto imenso de distorções explica o poder de barganha de Clara”, entre elas o fato de ela receber aposentadoria integral (uma suposição sua, porque isso não é dito no filme em momento algum). Diz o autor:
“Na maioria dos países, a aposentadoria é um período de ajustes e contenção, sobretudo para quem teve vida profissional mediana, afinal, não é comum aposentadoria com salário integral.”
E complementa, adiante:
“Clara é aposentada, provavelmente no teto do INSS, e recebe a pensão do marido, que, imagino eu, é de professor titular da UFPE, ou algo equivalente. Nas regras brasileiras, exclusividade nossa, Clara pode acumular seu próprio benefício com o do marido.”
Após (com mais uma suposição) criticar o fato de o apartamento ter provavelmente sido comprado por meio de financiamento obtido junto ao antigo BNH, ele volta a mirar a Previdência. “Claro que a soma de nossas distorções –que resultam, entre outras, no gasto de 13% do PIB com aposentadoria e pensões, quando pela nossa estrutura demográfica deveríamos gastar 5%– é importante causa do baixo crescimento econômico.
O setor público não tem recursos para financiar a construção da infraestrutura física e social do país, incluindo, entre outros tantos setores, o de saneamento básico.”
Em suma, para o economista, os custos da Previdência Social drenam recursos de outras áreas e, por conta disso, o Estado perde sua capacidade de investimento. É como se a Previdência Social sustentasse “privilegiados” em detrimento das necessidades do restante da população.
A força da grana que ergue e destrói coisas belas
Clara, a protagonista de Aquarius, é uma personagem contraditória. Escapando da tentação de muitos cineastas em retratar pessoas de forma linear, por vezes beirando o caricato, Kléber Mendonça Filho conseguiu construir uma história em que a personagem principal é complexa, com suas idiossincrasias, inclusive de classe, que levam a refletir durante toda a narrativa. Não é uma típica “mocinha” de películas comerciais, mas é uma mulher acostumada a resistir. Luta contra um câncer, contra as perdas que sofre ao longo da vida, contra mudanças que julga não serem positivas, e, por fim, se posiciona de forma inflexível diante da especulação imobiliária que pretende expulsá-la se seu apartamento.
Para o colunista Pessoa, a resistência de Clara só existe por ela ser “privilegiada”. “Em países socialmente mais justos, uma pessoa com o histórico de vida de Clara venderia o apartamento por um bom preço ou o trocaria por um ou dois na nova torre”, diz o autor. A protagonista, segundo a argumentação, resiste porque tem condições financeiras para fazê-lo, em função de distorções que caracterizam um país socialmente injusto.
Fazendo um simples exercício de lógica: todos os outros apartamentos do edifício foram vendidos. Supõe-se, por silogismo, que os outros proprietários tenham a mesma condição socioeconômica de Clara. Por que, então, todos venderam e ela não? Se utilizarmos apenas o fator economicista – ela resiste porque tem dinheiro – fica difícil sustentar toda a narrativa ficcional de Pessoa construída em cima da história do filme. Até a expressão “poder de barganha” utilizada pelo economista soa imprópria. A personagem não quer barganhar ou negociar. Ela não quer vender. Ponto.
(Curioso que liberais do ponto de vista econômico, defensores do sagrado direito de propriedade, às vezes flexibilizem seus pontos de vista, não?)
Mas não esqueçamos o que foi escrito pelo economista, retratado dois parágrafos acima: “Em países socialmente mais justos, uma pessoa com o histórico de vida de Clara venderia o apartamento por um bom preço”. O autor deve desconhecer uma animação da Pixar intitulada Up – Altas Aventuras, na qual o personagem central, Carl, se recusa a vender sua casa para a construção de um prédio. A história é inspirada em um caso real, de Edith Macefield, uma senhora de 82 anos que se recusou a vender sua pequena casa, em Ballard, Seattle (EUA), e acabou literalmente cercada por um shopping center. Mesmo com todas as dificuldades, resistiu a uma oferta de US$ 1 milhão feita em 2006.
Edith, falecida em 2008, vivia no Estados Unidos. E não no Brasil, na Venezuela ou em Cuba.
Pessoa diz em seu texto, em síntese, que “um conjunto imenso de distorções explica o poder de barganha de Clara”, entre elas o fato de ela receber aposentadoria integral (uma suposição sua, porque isso não é dito no filme em momento algum). Diz o autor:
“Na maioria dos países, a aposentadoria é um período de ajustes e contenção, sobretudo para quem teve vida profissional mediana, afinal, não é comum aposentadoria com salário integral.”
E complementa, adiante:
“Clara é aposentada, provavelmente no teto do INSS, e recebe a pensão do marido, que, imagino eu, é de professor titular da UFPE, ou algo equivalente. Nas regras brasileiras, exclusividade nossa, Clara pode acumular seu próprio benefício com o do marido.”
Após (com mais uma suposição) criticar o fato de o apartamento ter provavelmente sido comprado por meio de financiamento obtido junto ao antigo BNH, ele volta a mirar a Previdência. “Claro que a soma de nossas distorções –que resultam, entre outras, no gasto de 13% do PIB com aposentadoria e pensões, quando pela nossa estrutura demográfica deveríamos gastar 5%– é importante causa do baixo crescimento econômico.
O setor público não tem recursos para financiar a construção da infraestrutura física e social do país, incluindo, entre outros tantos setores, o de saneamento básico.”
Em suma, para o economista, os custos da Previdência Social drenam recursos de outras áreas e, por conta disso, o Estado perde sua capacidade de investimento. É como se a Previdência Social sustentasse “privilegiados” em detrimento das necessidades do restante da população.
A força da grana que ergue e destrói coisas belas
Clara, a protagonista de Aquarius, é uma personagem contraditória. Escapando da tentação de muitos cineastas em retratar pessoas de forma linear, por vezes beirando o caricato, Kléber Mendonça Filho conseguiu construir uma história em que a personagem principal é complexa, com suas idiossincrasias, inclusive de classe, que levam a refletir durante toda a narrativa. Não é uma típica “mocinha” de películas comerciais, mas é uma mulher acostumada a resistir. Luta contra um câncer, contra as perdas que sofre ao longo da vida, contra mudanças que julga não serem positivas, e, por fim, se posiciona de forma inflexível diante da especulação imobiliária que pretende expulsá-la se seu apartamento.
Para o colunista Pessoa, a resistência de Clara só existe por ela ser “privilegiada”. “Em países socialmente mais justos, uma pessoa com o histórico de vida de Clara venderia o apartamento por um bom preço ou o trocaria por um ou dois na nova torre”, diz o autor. A protagonista, segundo a argumentação, resiste porque tem condições financeiras para fazê-lo, em função de distorções que caracterizam um país socialmente injusto.
Fazendo um simples exercício de lógica: todos os outros apartamentos do edifício foram vendidos. Supõe-se, por silogismo, que os outros proprietários tenham a mesma condição socioeconômica de Clara. Por que, então, todos venderam e ela não? Se utilizarmos apenas o fator economicista – ela resiste porque tem dinheiro – fica difícil sustentar toda a narrativa ficcional de Pessoa construída em cima da história do filme. Até a expressão “poder de barganha” utilizada pelo economista soa imprópria. A personagem não quer barganhar ou negociar. Ela não quer vender. Ponto.
(Curioso que liberais do ponto de vista econômico, defensores do sagrado direito de propriedade, às vezes flexibilizem seus pontos de vista, não?)
Mas não esqueçamos o que foi escrito pelo economista, retratado dois parágrafos acima: “Em países socialmente mais justos, uma pessoa com o histórico de vida de Clara venderia o apartamento por um bom preço”. O autor deve desconhecer uma animação da Pixar intitulada Up – Altas Aventuras, na qual o personagem central, Carl, se recusa a vender sua casa para a construção de um prédio. A história é inspirada em um caso real, de Edith Macefield, uma senhora de 82 anos que se recusou a vender sua pequena casa, em Ballard, Seattle (EUA), e acabou literalmente cercada por um shopping center. Mesmo com todas as dificuldades, resistiu a uma oferta de US$ 1 milhão feita em 2006.
Edith, falecida em 2008, vivia no Estados Unidos. E não no Brasil, na Venezuela ou em Cuba.
Os puxadinhos da narrativa
Pessoa traça hipóteses sobre a protagonista de Aquarius com a finalidade
de justificar o que julga ser um “sistema de privilégios”, a
Previdência Social brasileira. Cria quase uma outra história em cima do
filme para justificar sua tese. Mas há problemas evidentes nessa
construção.
Ainda que Clara fosse uma aposentada do INSS, seria difícil imaginá-la
como uma beneficiária padrão. Artigo de Eduardo Fagnani, no livro Por
que gritamos Golpe?, dá uma ideia da importância da Previdência Social
no Brasil. Dizer que ela “concorre” ou subtrai investimentos de outras
áreas é ignorar seu verdadeiro papel como um redutor das desigualdades
sociais, em especial com a política de valorização do salário-mínimo
efetivada nos últimos anos.
Diz Fagnani:
“A previdência urbana e rural brasileira beneficia diretamente cerca de
30 milhões de famílias e indiretamente mais de 90 milhões de pessoas.
Atualmente, mais de 80% dos idosos tem proteção na velhice. A população
idosa brasileira em condição de pobreza é inferior a 10%. Sem os
benefícios da previdência, esse percentual seria superior a 70%.”
No mesmo artigo, de acordo com cálculos de Fagnani, o Orçamento de
Seguridade Social, que inclui a previdência, mas não só ela, captura
aproximadamente 10% do PIB, sendo que os gastos previdenciários
representariam 7% do produto interno bruto brasileiro, e não 13%, como
afirma Pessoa.
Isso se relaciona a outro mito frequentemente divulgado, o do déficit. A
Constituição de 1988 instituiu um modelo tripartite formado por
contribuições de trabalhadores, empregadores e pelo Estado, que tem como
fontes de financiamento a Contribuição Social para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
das Empresas (CSLL). Mas, na hora de se calcular o “déficit”, a parte
estatal some da conta, como se o modelo tripartite não existisse.
Contabilizando tal contribuição, a Previdência apresenta superávit desde
2007, em função do aumento da formalização do trabalho no Brasil.
Outro argumento utilizado pelo economista é do empreendimento
imobiliário como gerador de renda e empregos. Por essa ótica, Clara
seria “egoísta” por impedir que seus (ex) vizinhos pudessem lucrar com
empreendimentos:
“Ela é capaz de enfrentar empresários gananciosos e barrar um
empreendimento que geraria: aumento de apartamentos em Boa Viagem; renda
para os empreendedores; renda para os ex-moradores do Aquarius que
esperam o fim do negócio para receber parcela final da venda; e aumento
significativo de IPTU para a prefeitura. Sem falar dos empregos e da
renda durante a construção e vários depois dela.”
Se o autor estivesse preocupado com justiça social, talvez, em vez de
mirar a protagonista, devesse voltar os olhos para a construtora em
questão. Se ela seguir o padrão brasileiro, pode estar inserida em um
contexto de isenções fiscais que prejudicam o investimento público e a
Previdência Social.
Recorremos novamente a Fagnani, que, neste artigo, relata que em 2012,
as isenções tributárias concedidas relativas às fontes da Seguridade
Social totalizaram 1,7% do PIB, e, em 2013 a ANFIP calculava que
atingiriam 2,7% do PIB de 2013. Pessoa também poderia incluir em seu
texto outro ponto, a sonegação das grandes empresas, o que inclui a
previdenciária. De acordo com o Sinprofaz, o valor total sonegado em
2014 seria de R$ 103,5 bilhões, perdendo, em termos de sonegação,
somente para o ICMS.
Também é impossível ignorar o papel dos aposentados na economia
nacional. Segundo dados referentes a 2012, seus rendimentos eram
fundamentais para a sustentabilidade econômica de 64% das cidades do
país, superando o total de recursos recebidos por meio do Fundo de
Participação dos Municípios (FPM) nestes locais.
Pessoa conta, de fuma forma diferente, uma narrativa repetida há tempos
pela mídia tradicional. Uma questão complexa, que precisa ser debatida,
mas que é apresentada sempre de forma simplista e visando à retirada de
direitos. Clara, definitivamente, não é a vilã dessa história.
Fonte: Outras Palavras/Portal Vermelho
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