sábado, 22 de junho de 2013

Pingentes




João Antônio, escritor paulista que morreu no Rio de Janeiro, em 1996, autor – entre outros – do conhecido Malagueta, Perus e Bacanaço, se declarava discípulo de Lima Barreto, a quem consagrava suas obras, escreveu em Malhação do Judas Carioca, coletânea de Contos-reportagem (a ele é atribuído a invenção do gênero) este Pingentes, texto que sempre me vem à mente quando a realidade insiste em restituir sua atualidade, apesar de escrito no início dos anos 70.
A reprodução desse texto é para repartir sua leitura, nestes dias de ampla mobilização social, em que se procuram as razões de tanta revolta.


                                                                       Pingentes


                                                                                 João Antônio




Passageiro da Central do Brasil só chega a notícia quando é pingente. E pingente morto, desastrado ou causador de desastres. Fora disso, passageiro da Central não existe. Quando pingente e morto vira alvo de promoções posteriores do tipo de reeducação do povo em termos social, econômico, político e técnico. Morto o pingente, começa-se a reconhecer que o carioca vive, afinal, numa cidade a refletir a animalização a que chegou o seu homem na simples luta para sobreviver.
Pingentes. Os dependurados do Rio vêm de longe. Em dezembro de 1921 já não eram novidade nenhuma nos trens da Central do Brasil. E, embora naquela época nossos escritores estivessem preocupados com beletrismos e parnasianismos, um mulato pobre que não passou de funcionário miúdo do Ministério da Guerra ("nasci sem dinheiro, mulato e livre"), chamado Lima Barreto, morador em Inhaúma, denunciava num de seus romances, o sempre por nós esquecido Clara dos Anjos, que "o subúrbio é o refúgio dos infelizes".
Nos últimos dias de maio de 74, os jornais registravam, apenas naquele ano, mais de quinhentos casos de desastres com pingentes _ trinta e seis mortos e quatrocentos e noventa e dois feridos.
Curioso como sobre todo o problema falta uma ótica à Lima Barreto. Ou melhor, como seus intérpretes, repórteres, escribas ou responsáveis conseguem imediatamente enxergar tudo sob o ângulo de quem não é passageiro da Central e vê o desastre do lado de fora.
O engenheiro responsável pela coordenação do sistema eletrificado de todo o Grande Rio acha que o problema é fundamentalmente de educação. O presidente da Central garante que os responsáveis pelos trens suburbanos têm procurado "através de campanhas educativas, mostrar aos passageirosos perigos que correm viajando como pingentes". E promete começar imediatamente uma repressão contra os pingentes, afinal, uns abusados.
Na área dos populares todos atacam o pingente, desde os próprios passageiros que viajam sentados, passando pelo funcionário dos guichês das passagens e chegando ao dono do botequim de Cascadura, instalado dentro da própria estação da Central, que saiu-se com este brilhantismo: "Tem gente viajando como pingente até durante o dia com os trens vazios. Não há necessidade de haver pingente. Ninguém vê pingente na porta do trem quando está chovendo. É só ter chuva".
Difícil alguém que não viaje nso trens _ e diariamente, na primeiras horas da manhã ou nas últimas da tarde _ entender ou imaginar o que vem a ser isso.
Mais do que pobres, os passageiros da Central do Brasil parecem não apenas pingentes nos trens, mas pingentes da cidade, uma espécie, em quantidade e qualidade, de sobreviventes urbanos, sempre pendurados na cidade e nunca fixos, estabilizados ou tranquilos. E, fora dessa situação marginalizada, o suburbano é o homem que paz parte daquele mundo chamado Rio Abandonado, ou seja Rio Tristeza, a Zona Norte. É o homem que aparece nesta condição trágica e grotesca, deste samba de Pedro Caetano:

"Quatro horas da manhã
Sai de casa o Zé Marmita
Pendurado na porta do trem
Zé Marmita vai e vem".

Pelo desespero e afobação geral, pela desorganização e mudanças das plataformas, tudo inesperado, anunciado pelos microfones da estrada de ferro, pela superlotação dos trens, talvez se possa concluir que todo passageiro da Central, desde que jovem ou do sexo masculino, é potencialmente um pingente. Ou porque prefira, queira, por comodidade e irresponsabilidade; ou porque seja obrigado a viajar na porta do trem.
Cascadura, seis da manhã. Vista de oito metros de altura, do alto do viaduto, a Estação da Central do Brasil tem um aspecto sinistro, lembrando um campo de concentração em que se misturam a arames e ferros dos lados extremos dos trilhos dos trens, uma sujeira encardida nas plataformas, uma tristeza geral no apinhado de gente e correria de trabalhadores. Apesar desse movimento e desse rumor, um silêncio estranho, cortado apenas pelo barulho dos trens nos trilhos e dos autos sobre o viaduto.
Enquanto o trem para a Estação Pedro II não vem, passageiros com seus pacotes, sacolas e maletas de trabalho vão fazendo gritar que a palavra marmiteiro ainda é uma verdade no Rio. E usam o próprio leito do trem para passar de uma plataforma a outra, evitando subir a escadaria lotada e que deveria comunicar, com algum conforto, as várias plataformas.
Para Antônio Mendes, que atende no balcão de um dos botequins da estação, aquilo é mais do que um risco, é um índice do passageiro da Central do Brasil:
_Olhe aí. Depois tem que haver desastre e morte, não é? Agora não é nada, vai ver quando vier o trem. Tem gente e que sobe e desce pelas janelas, tem gente que viaja em cima do vagão, tem gente que vem sentada na janela e a maioria vem urrando. Na porta do trem, como pingentes,então já é uma tradição, principalmente os garotos e a estudantadda. Não há diabo que consiga evitar isso. O trem pode passar vazio que tem gente na porta.
A dois metros dele, do lado de fora do balcão, maltrapilho, sapato cambaio, dentes cariados, sacolinha jogada nas costas, rosto cavado, um garoto de uns doze anos fuma debochadamente e pergunta, incisivo:
_ E lá na sua terra, em Portugal, como é que o pessoal anda de trem?
Antônio,o português, para de servir o café como se ouvisse uma liberdade não data:
_ Nunca ando de trem, que não sou maluco. Nem lá na minha terra.
Um pingente como Jaime dos Santos, vinte anos, ganhando quatrocentos e vinte cruzeiros por mês no comércio da Rua da Alfândega, para pegar às oito no trabalho acorda às cinco e apanha o trem das sete em Cascadura. Para ele, todos os acenos de campanhas de reeducação não vão lhe melhorar a vida , nem os trens:
_ Pago a passagem na porrada, debaixo de cotovelada. Desço a escadaria correndo e pra entrar no trem tem que ser correndo e na porrada, tendo que dar e levar bofetão. Então, eu fico na porta, que lá dentro está espremido de gente, que nem sardinha em lata. Eu fico na porta, que não sou besta, que é mais fácil entrar e sair. E eu tenho que pegar o trem, que não posso chegar atrasado ao trabalho. Não quero perder o dia.
Já o biscateiro Manuel dos Santos Alves viaja todos os dias de trem direto de Deodoro (que não faz paradas nas estações) e acha que a maior precariedade é das próprias composições da Central:
_ Nada. Até garoto abre essas portas de trem. Depois, pra viajar como pingente, o cara sempre traz uma pedra na mão e coloca na porta. Ela fica presinha e aberta.]
Homens, mulheres e crianças que viajam ao lado dos passageiros, em todos os horários dos trens, fazem parte de uma população à margem do Rio de Janeiro. Aleijados, pedinttes de esmolas, meninos vendedores de drops, balas, amendoim, revistinhas e jornais, cegos e velhos, gente sem eira nem beira, importunando os passageiros de marmita embrulhada debaixo do braço, exigindo-lhes atenções e trocados ou surrupiando-lhes carteiras, sacolas, bolsas e dinheiro. Os pivetes, os gatunos e os batedores de carteiras proliferam. Quando em quando, suas trampolinagens pulam para as primeiras páginas dos jornais _ dão falsos sinais de alarma, assaltam, deixam mulheres sem roupa, atiram nos que resistem.
O vozerio dos vendedores maltrapilhos fazem uma zoada durante a viagem toda e os trens, lerdos e chacoalhando, a sessenta quilômetros por hora, mostram lá fora, pleas janelas de vidros quebrados, o Rio Zona Norte _ de um lado e outro dos trilhos dos trens da Central, o casario imundo, encardido, descascado e as favelas, Salgueiro, Mangueira, Candelária, muitas, trepam nos morros.
Convidada a falar, a sociologia disse que as pessoas são desumanizadas pelos horários e a tal ponto ficam sem individualidade dentro da multidão, que procuram readquirir a humanidade e a individualidade, tentando enganar a máquina, mesmo se colocando em perigo de vida.
Mas a empregada doméstica Maria Teresa Conceição Martins, de trinta anos, sai todos os dias de Cascadura para trabalhar no Posto Três, em Copacabana, e diz que a sua luta pela individualidade é esta:
_ A gente pega o trem da Central porque custa cinquenta centavos. Se eu fosse pegar o ônibus, só de Cascadura até o Passeio Público gastava oitenta. Manjou? É aquela de pobre não luta, peleja.
Morte, invalidez temporária ou permanente, lesões graves ou leves, o problema legal é sempre complicado _ quem vai ficar com a responsabilidade legal pelos acidentes? No caso da Rede Ferroviária Federal dispor de advogados hábeis, é muito provável que poucos recebam alguma indenização ou pensão. Afinal, segundo os próprios passageiros não pingentes, quando chove ninguém viaja do lado de fora da porta do trem.
Mas pela visão de Lima Barreto, as coisas talvez ficassem assim: toda a Zona Norte, o chamado Rio Esquecido não tem nenhuma representatividade política, tudo é feito e dirigido parra a Zona Sul da cidade. Enterra-se dinheiro nos buracos de um Metrô (373 milhões até maio de 74) que pretende primeiro ligar Ipanema à Tijuca. Desde 1960, a Rede Ferroviária Federal não apresenta nenhuma melhoria nos trens suburbanos e, se tudo correr bem, somente em 76 chegarão novos trens para o transporte dos subúrbios do do Grande Rio.

Tudo para a Zona Sul, o lado rico da cidade. Um dado – enquanto do lado de lá do Túnel Novo, entre Copacabana e Leblon, vivem cerca de quinhentas mil pessoas, na Zona Norte e no Grande Rio estão os que restam: cerca de três milhões e quinhentas mil. Exatamente aquelas pessoas a que os escribas e intérpretes agora chamam brilhosamente de povo-meu-povo. Lima, não era brilhoso, nem eloquente e os chamava de infelizes.

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