João
Antônio, escritor paulista que morreu no Rio de Janeiro, em 1996,
autor – entre outros – do conhecido Malagueta, Perus e
Bacanaço, se declarava discípulo de Lima Barreto, a quem consagrava suas obras, escreveu em
Malhação do Judas Carioca,
coletânea de Contos-reportagem (a ele é atribuído a invenção do
gênero) este Pingentes, texto
que sempre me vem à mente quando a realidade insiste em restituir
sua atualidade, apesar de escrito no início dos anos 70.
A
reprodução desse texto é para repartir sua leitura, nestes dias de
ampla mobilização social, em que se procuram as razões de tanta
revolta.
Pingentes
João Antônio
Passageiro
da Central do Brasil só chega a notícia quando é pingente. E
pingente morto, desastrado ou causador de desastres. Fora disso,
passageiro da Central não existe. Quando pingente e morto vira alvo
de promoções posteriores do tipo de reeducação do povo em termos
social, econômico, político e técnico. Morto o pingente, começa-se
a reconhecer que o carioca vive, afinal, numa cidade a refletir a
animalização a que chegou o seu homem na simples luta para
sobreviver.
Pingentes.
Os dependurados do Rio vêm de longe. Em dezembro de 1921 já não
eram novidade nenhuma nos trens da Central do Brasil. E, embora
naquela época nossos escritores estivessem preocupados com
beletrismos e parnasianismos, um mulato pobre que não passou de
funcionário miúdo do Ministério da Guerra ("nasci sem
dinheiro, mulato e livre"), chamado Lima Barreto, morador em
Inhaúma, denunciava num de seus romances, o sempre por nós
esquecido Clara dos
Anjos, que
"o subúrbio é o refúgio dos infelizes".
Nos
últimos dias de maio de 74, os jornais registravam, apenas naquele
ano, mais de quinhentos casos de desastres com pingentes _ trinta e
seis mortos e quatrocentos e noventa e dois feridos.
Curioso
como sobre todo o problema falta uma ótica à Lima Barreto. Ou
melhor, como seus intérpretes, repórteres, escribas ou responsáveis
conseguem imediatamente enxergar tudo sob o ângulo de quem não é
passageiro da Central e vê o desastre do lado de fora.
O
engenheiro responsável pela coordenação do sistema eletrificado de
todo o Grande Rio acha que o problema é fundamentalmente de
educação. O presidente da Central garante que os responsáveis
pelos trens suburbanos têm procurado "através de campanhas
educativas, mostrar aos passageirosos perigos que correm viajando
como pingentes". E promete começar imediatamente uma repressão
contra os pingentes, afinal, uns abusados.
Na
área dos populares todos atacam o pingente, desde os próprios
passageiros que viajam sentados, passando pelo funcionário dos
guichês das passagens e chegando ao dono do botequim de Cascadura,
instalado dentro da própria estação da Central, que saiu-se com
este brilhantismo: "Tem gente viajando como pingente até
durante o dia com os trens vazios. Não há necessidade de haver
pingente. Ninguém vê pingente na porta do trem quando está
chovendo. É só ter chuva".
Difícil
alguém que não viaje nso trens _ e diariamente, na primeiras horas
da manhã ou nas últimas da tarde _ entender ou imaginar o que vem a
ser isso.
Mais
do que pobres, os passageiros da Central do Brasil parecem não
apenas pingentes nos trens, mas pingentes da cidade, uma espécie, em
quantidade e qualidade, de sobreviventes urbanos, sempre pendurados
na cidade e nunca fixos, estabilizados ou tranquilos. E, fora dessa
situação marginalizada, o suburbano é o homem que paz parte
daquele mundo chamado Rio Abandonado, ou seja Rio Tristeza, a Zona
Norte. É o homem que aparece nesta condição trágica e grotesca,
deste samba de Pedro Caetano:
"Quatro
horas da manhã
Sai
de casa o Zé Marmita
Pendurado
na porta do trem
Zé
Marmita vai e vem".
Pelo
desespero e afobação geral, pela desorganização e mudanças das
plataformas, tudo inesperado, anunciado pelos microfones da estrada
de ferro, pela superlotação dos trens, talvez se possa concluir que
todo passageiro da Central, desde que jovem ou do sexo masculino, é
potencialmente um pingente. Ou porque prefira, queira, por comodidade
e irresponsabilidade; ou porque seja obrigado a viajar na porta do
trem.
Cascadura,
seis da manhã. Vista de oito metros de altura, do alto do viaduto, a
Estação da Central do Brasil tem um aspecto sinistro, lembrando um
campo de concentração em que se misturam a arames e ferros dos
lados extremos dos trilhos dos trens, uma sujeira encardida nas
plataformas, uma tristeza geral no apinhado de gente e correria de
trabalhadores. Apesar desse movimento e desse rumor, um silêncio
estranho, cortado apenas pelo barulho dos trens nos trilhos e dos
autos sobre o viaduto.
Enquanto
o trem para a Estação Pedro II não vem, passageiros com seus
pacotes, sacolas e maletas de trabalho vão fazendo gritar que a
palavra marmiteiro ainda é uma verdade no Rio. E usam o próprio
leito do trem para passar de uma plataforma a outra, evitando subir a
escadaria lotada e que deveria comunicar, com algum conforto, as
várias plataformas.
Para
Antônio Mendes, que atende no balcão de um dos botequins da
estação, aquilo é mais do que um risco, é um índice do
passageiro da Central do Brasil:
_Olhe
aí. Depois tem que haver desastre e morte, não é? Agora não é
nada, vai ver quando vier o trem. Tem gente e que sobe e desce pelas
janelas, tem gente que viaja em cima do vagão, tem gente que vem
sentada na janela e a maioria vem urrando. Na porta do trem, como
pingentes,então já é uma tradição, principalmente os garotos e a
estudantadda. Não há diabo que consiga evitar isso. O trem pode
passar vazio que tem gente na porta.
A
dois metros dele, do lado de fora do balcão, maltrapilho, sapato
cambaio, dentes cariados, sacolinha jogada nas costas, rosto cavado,
um garoto de uns doze anos fuma debochadamente e pergunta, incisivo:
_
E lá na sua terra, em Portugal, como é que o pessoal anda de trem?
Antônio,o
português, para de servir o café como se ouvisse uma liberdade não
data:
_
Nunca ando de trem, que não sou maluco. Nem lá na minha terra.
Um
pingente como Jaime dos Santos, vinte anos, ganhando quatrocentos e
vinte cruzeiros por mês no comércio da Rua da Alfândega, para
pegar às oito no trabalho acorda às cinco e apanha o trem das sete
em Cascadura. Para ele, todos os acenos de campanhas de reeducação
não vão lhe melhorar a vida , nem os trens:
_
Pago a passagem na porrada, debaixo de cotovelada. Desço a escadaria
correndo e pra entrar no trem tem que ser correndo e na porrada,
tendo que dar e levar bofetão. Então, eu fico na porta, que lá
dentro está espremido de gente, que nem sardinha em lata. Eu fico na
porta, que não sou besta, que é mais fácil entrar e sair. E eu
tenho que pegar o trem, que não posso chegar atrasado ao trabalho.
Não quero perder o dia.
Já
o biscateiro Manuel dos Santos Alves viaja todos os dias de trem
direto de Deodoro (que não faz paradas nas estações) e acha que a
maior precariedade é das próprias composições da Central:
_
Nada. Até garoto abre essas portas de trem. Depois, pra viajar como
pingente, o cara sempre traz uma pedra na mão e coloca na porta. Ela
fica presinha e aberta.]
Homens,
mulheres e crianças que viajam ao lado dos passageiros, em todos os
horários dos trens, fazem parte de uma população à margem do Rio
de Janeiro. Aleijados, pedinttes de esmolas, meninos vendedores de
drops, balas, amendoim, revistinhas e jornais, cegos e velhos, gente
sem eira nem beira, importunando os passageiros de marmita embrulhada
debaixo do braço, exigindo-lhes atenções e trocados ou
surrupiando-lhes carteiras, sacolas, bolsas e dinheiro. Os pivetes,
os gatunos e os batedores de carteiras proliferam. Quando em quando,
suas trampolinagens pulam para as primeiras páginas dos jornais _
dão falsos sinais de alarma, assaltam, deixam mulheres sem roupa,
atiram nos que resistem.
O
vozerio dos vendedores maltrapilhos fazem uma zoada durante a viagem
toda e os trens, lerdos e chacoalhando, a sessenta quilômetros por
hora, mostram lá fora, pleas janelas de vidros quebrados, o Rio Zona
Norte _ de um lado e outro dos trilhos dos trens da Central, o
casario imundo, encardido, descascado e as favelas, Salgueiro,
Mangueira, Candelária, muitas, trepam nos morros.
Convidada
a falar, a sociologia disse que as pessoas são desumanizadas pelos
horários e a tal ponto ficam sem individualidade dentro da multidão,
que procuram readquirir a humanidade e a individualidade, tentando
enganar a máquina, mesmo se colocando em perigo de vida.
Mas
a empregada doméstica Maria Teresa Conceição Martins, de trinta
anos, sai todos os dias de Cascadura para trabalhar no Posto Três,
em Copacabana, e diz que a sua luta pela individualidade é esta:
_
A gente pega o trem da Central porque custa cinquenta centavos. Se eu
fosse pegar o ônibus, só de Cascadura até o Passeio Público
gastava oitenta. Manjou? É aquela de pobre não luta, peleja.
Morte,
invalidez temporária ou permanente, lesões graves ou leves, o
problema legal é sempre complicado _ quem vai ficar com a
responsabilidade legal pelos acidentes? No caso da Rede Ferroviária
Federal dispor de advogados hábeis, é muito provável que poucos
recebam alguma indenização ou pensão. Afinal, segundo os próprios
passageiros não pingentes, quando chove ninguém viaja do lado de
fora da porta do trem.
Mas
pela visão de Lima Barreto, as coisas talvez ficassem assim: toda a
Zona Norte, o chamado Rio Esquecido não tem nenhuma
representatividade política, tudo é feito e dirigido parra a Zona
Sul da cidade. Enterra-se dinheiro nos buracos de um Metrô (373
milhões até maio de 74) que pretende primeiro ligar Ipanema à
Tijuca. Desde 1960, a Rede Ferroviária Federal não apresenta
nenhuma melhoria nos trens suburbanos e, se tudo correr bem, somente
em 76 chegarão novos trens para o transporte dos subúrbios do do
Grande Rio.
Tudo
para a Zona Sul, o lado rico da cidade. Um dado – enquanto do lado
de lá do Túnel Novo, entre Copacabana e Leblon, vivem cerca de
quinhentas mil pessoas, na Zona Norte e no Grande Rio estão os que
restam: cerca de três milhões e quinhentas mil. Exatamente aquelas
pessoas a que os escribas e intérpretes agora chamam brilhosamente
de povo-meu-povo. Lima, não era brilhoso, nem eloquente e os chamava
de infelizes.
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