Longe da água
Virgínia do Rosário
Mestra em Literatura
ô
morena do mar
Eu disse
que ia voltar
Ai, eu
disse que ia chegar, cheguei
Para te
agradar
Ai, eu
trouxe os peixinhos do mar, morena
Para te
enfeitar, eu trouxe as conchinhas do mar
As
estrelas do céu, morena
E as
estrelas do mar
Ai, as
pratas e os ouros de Yemanjá
Dorival
Caymmi, Morena do mar
Do mar de Albatroz, freqüentemente escuro e frio, aliado dos
ventos, impulsores de minúsculos e poderosos grãos de areia, que
beliscam os olhos e a pele de praieiros, o gaúcho Michel Laub1
(1973- ) retira a juventude do protagonista de Longe da água
e presenteia o(a) leitor(a) com um cálido, transparente e abissal
romance de formação.
Aquelas últimas décadas do século passado abrem-se, no mesmo
diapasão político do Brasil, para debater questões antes
reprimidas, tantas que as pautas propostas extravasam e inundam:
rompem-se as comportas.
Esférico, o narrador propõe a retomada do debate de temas que
perpassaram (e perpassam) a existência da juventude, especialmente
da de classe média; esbate-se com eles, incitando o público à
leitura, através do vocativo “você”, com que permeia a
narrativa, cuja voz se expressa na primeira pessoa “eu”.
O protagonista, acompanhado pela presença física ou pela lembrança
de Jaime e Laura, de Sérgio e Cláudio, de André, de pessoas da
família e de uma secretária, conduz o leitor ou a leitora ao mar, à
escola, à festa, às ruas, à feira do livro de Porto Alegre, ao seu
endereço – moradia ou trabalho – e à grande São Paulo. Todas
essas personagens convidam a devorar as páginas do livro de um só
gole.
É possível surfar com o narrador por quinze breves–longos anos –
dos quinze aos trinta anos, dele- nossos, sem cansaço algum.
Com ele, em sua-nossa prancha da memória, vem à tona a iniciação
sexual (a masturbação, o filme erótico, o primeiro beijo, a
primeira relação sexual, o amor e o desamor), a amizade e a
inimizade, a briga, a distribuição de papéis no interior de cada
grupo, as pichações, o hetero e homossexualismo, o envolvimento ou
não com drogas, o contato com o esporte ou com a psicoterapia, a
inclusão ou a exclusão do pai e da mãe do cotidiano, as primeiras
pequenas, grandes e infinitas perdas, as culpas e as desculpas, as
marcas...
Entre retrospecções e prospecções, a narrativa aponta quatro
partes: longe, a água, mais longe e mais
água, e a palavra “quarentena”, ameaçadora como uma onda
gigante, mantém o suspense da narrativa, da dramática morte de
Jaime até o final, como a pressagiar a cada página, uma nova
tragédia.
Assim, na companhia do narrador, no mesmo ritmo ondulante, há a
conclusão do curso superior, o ingresso no mundo do trabalho, o
casal, narrador e Laura, sob o mesmo teto familiar e no mesmo local
de trabalho, a estabilidade econômica, o conforto, o carro, a
inflexão frente ao modo capitalista de produção – a manipulação,
a capitulação (conforme p.97-101) – e a denúncia desses
mecanismos de cooptação (no caso, através da obra literária).
E, outra vez, então, irrompe a tragédia. Novamente, a rede
aprisiona, e, dessa vez, não há prancha, mas há automóvel, a
tecnologia avançada, o mar indomável do trânsito da megalópole.
Foi-se Jaime, o amigo, aos quinze anos. Foi-se Laura, a amada, aos
trinta anos. E a juventude. Solidão e dor, culpa e desculpa. Culpa e
dor. À deriva, é possível a volta por cima? A averiguação lúcida
da carcaça do carro, as últimas frases da narrativa indicam que o
protagonista não naufraga.
O mar de Laub e de Caymmi, ambos trazem oferendas de vida e morte. E
de vida, novamente. E de prazer estético.
1
LAUB, Michel, Longe da água. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
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