quinta-feira, 13 de junho de 2013





Longe da água


                                            Virgínia do Rosário
                                               Mestra em Literatura


ô morena do mar
Eu disse que ia voltar
Ai, eu disse que ia chegar, cheguei
Para te agradar
Ai, eu trouxe os peixinhos do mar, morena
Para te enfeitar, eu trouxe as conchinhas do mar
As estrelas do céu, morena
E as estrelas do mar
Ai, as pratas e os ouros de Yemanjá
Dorival Caymmi, Morena do mar


Do mar de Albatroz, freqüentemente escuro e frio, aliado dos ventos, impulsores de minúsculos e poderosos grãos de areia, que beliscam os olhos e a pele de praieiros, o gaúcho Michel Laub1 (1973- ) retira a juventude do protagonista de Longe da água e presenteia o(a) leitor(a) com um cálido, transparente e abissal romance de formação.
Aquelas últimas décadas do século passado abrem-se, no mesmo diapasão político do Brasil, para debater questões antes reprimidas, tantas que as pautas propostas extravasam e inundam: rompem-se as comportas.
Esférico, o narrador propõe a retomada do debate de temas que perpassaram (e perpassam) a existência da juventude, especialmente da de classe média; esbate-se com eles, incitando o público à leitura, através do vocativo “você”, com que permeia a narrativa, cuja voz se expressa na primeira pessoa “eu”.
O protagonista, acompanhado pela presença física ou pela lembrança de Jaime e Laura, de Sérgio e Cláudio, de André, de pessoas da família e de uma secretária, conduz o leitor ou a leitora ao mar, à escola, à festa, às ruas, à feira do livro de Porto Alegre, ao seu endereço – moradia ou trabalho – e à grande São Paulo. Todas essas personagens convidam a devorar as páginas do livro de um só gole.
É possível surfar com o narrador por quinze breves–longos anos – dos quinze aos trinta anos, dele- nossos, sem cansaço algum.
Com ele, em sua-nossa prancha da memória, vem à tona a iniciação sexual (a masturbação, o filme erótico, o primeiro beijo, a primeira relação sexual, o amor e o desamor), a amizade e a inimizade, a briga, a distribuição de papéis no interior de cada grupo, as pichações, o hetero e homossexualismo, o envolvimento ou não com drogas, o contato com o esporte ou com a psicoterapia, a inclusão ou a exclusão do pai e da mãe do cotidiano, as primeiras pequenas, grandes e infinitas perdas, as culpas e as desculpas, as marcas...
Entre retrospecções e prospecções, a narrativa aponta quatro partes: longe, a água, mais longe e mais água, e a palavra “quarentena”, ameaçadora como uma onda gigante, mantém o suspense da narrativa, da dramática morte de Jaime até o final, como a pressagiar a cada página, uma nova tragédia.
Assim, na companhia do narrador, no mesmo ritmo ondulante, há a conclusão do curso superior, o ingresso no mundo do trabalho, o casal, narrador e Laura, sob o mesmo teto familiar e no mesmo local de trabalho, a estabilidade econômica, o conforto, o carro, a inflexão frente ao modo capitalista de produção – a manipulação, a capitulação (conforme p.97-101) – e a denúncia desses mecanismos de cooptação (no caso, através da obra literária).
E, outra vez, então, irrompe a tragédia. Novamente, a rede aprisiona, e, dessa vez, não há prancha, mas há automóvel, a tecnologia avançada, o mar indomável do trânsito da megalópole.
Foi-se Jaime, o amigo, aos quinze anos. Foi-se Laura, a amada, aos trinta anos. E a juventude. Solidão e dor, culpa e desculpa. Culpa e dor. À deriva, é possível a volta por cima? A averiguação lúcida da carcaça do carro, as últimas frases da narrativa indicam que o protagonista não naufraga.
O mar de Laub e de Caymmi, ambos trazem oferendas de vida e morte. E de vida, novamente. E de prazer estético.

1 LAUB, Michel, Longe da água. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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