Gilmar
de Lima Martins
Hoje, 05
de outubro, a Constituição Federal completa 25 anos de sua
promulgação, ocorrida em 1988.
Tenho
comigo que os eventos realizados no país, a exceção dos promovidos
pela Ordem dos Advogados do Brasil, salvo melhor juízo, estão aquém
da importância que se deva dar ao acontecido.
A
despeito de todas as eventuais críticas que – aqui ou ali – são
feitas às suas limitações ou impropriedades, a Constituição
representou um avanço inequívoco na institucionalização da
democracia no Brasil.
A
abordagem que trago, em caráter sintético e superficial, será
menos jurídica e mais política.
Assim,
considero necessário um balanço da Constituição, a partir do seu
texto originalmente promulgado, sem deixar de levar em conta as mais
de 70 emendas por ela sofridas nesse período.
Antes, é
preciso afirmar-se que o processo constituinte, inciado com a eleição
dos deputados e senadores em 1986, e a constituição resultante, em
1988, se deram em um dos ambientes mais amplamente democráticos nas
condições históricas brasileiras, mesmo que sob a vigência de uma
vigorosa legislação oriunda da ditadura militar, conhecida como o
chamado entulho autoritário.
Dessa
legislação, afirma-se, como seu exemplo mais eloquente, a
permanência de uma lei de anistia que, inaceitavelmente confirmada
no plenário do Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que se fez
em quase todos os países do mundo e da América Latina, em
particular, impossibiliitou a apuração, o julgamento e a condenação
dos agentes do estado responsáveis pelos crimes de tortura, morte e
desaparecimentos praticados pelo regime militar.
Não por
acaso, neste ano de 2013, após o desaparecimento de pedreiro
Amarildo, na favela da Rocinha, trazido à tona no curso das
mobilizações populares de junho e pela ampla repercussão do caso,
concluído o inquérito policial, restaram indiciados outros
policiciais, que atuavam na Unidade de Polícia Pacificadora do
estado do Rio de Janeiro, por crime de tortura, morte e
desaparecimento do operário.
Desse
modo, comprova-se o que já se sabia: a persistência de práticas
criminosas, por conta dos aparatos de segurança policial, sobretudo
contra os mais pobres, como sub-produto do regime autoritário e pela
incapacidade demonstrada, pelos governos civis que lhe sucederam, de
enfrentar o grave problema da política de segurança pública no
país e do sistema penitenciário brasileiro sob viés da democracia.
Se,
internamente, as condicionantes principais do processo constitutuinte
e da nova constituição devem ser creditadas à luta pela
redemocratização do país, à afirmação e ampliação dos
direitos e garantias individuais, à constitucionalização dos
direitos trabalhistas e sociais e à democratização das
instituições estatais, de modo a permitir seu maior controle
social, externamente, o mundo ainda vivia sob o clima de guerra fria
e da oposição entre dois sistemas, o capitalismo e o socialismo
real.
Este
duplo e simultâneo condicionamento permitiu a elaboração da
constituição, como já referido, em um ambiente bastante favorável
à inserção de conquistas democráticas no seu texto, ambiente este
construído no processo mesmo de elaboração, inédito no país, de
montagem de sub-comissões temáticas, com audiências públicas pelo
país, e com considerável participação de entidades e movimentos
sociais na apresentação de propostas.
Em que
pese a defesa de uma assembleia constituinte exclusiva, exercida por
alguns juristas, lideranças políticas e partidos à época, penso
que o conteúdo da constituição, elaborado pelo congresso
constituinte eleito em 1986, legou um texto amplo, plural e profundo,
responsável por inegáveis e, espera-se, irrevogáveis conquistas
democráticas nos planos político, econômico, social e cultural.
Considerando-se
a classificação de que os direitos e garantias individuais,
associados aos direitos sociais, configuram os chamados direitos de
primeira e segunda geração, a Constituição inovou, indo além
deles _ ratificando-os e ampliando-os _ com os chamados direitos de
terceira geração, referidos pelos direitos transindividuais e
coletivos, de que são exemplos os dispositivos que inscreveram como
direitos constitucionais os temas relacionados às relações de
consumo, às questões ambientais, entre outras.
Para não
alongar este texto, registro os artigos iniciais do texto
constitucional, que tratam dos princípios fundamentais e dos
direitos e deveres individuais e coletivos.
Com
relação aos princípios fundamentais, o Art 1º estabelece:
Art.
1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
Sem a
pretensão de discutir cada um desses fundamentos, cabe salientar a
força do inciso III, que tem servido de suporte, inclusive, para
ações judiciais as mais diversas, notadamente as ações penais,
embora _ cabe a observação – levado ao seu extremo, talvez
implicasse em fechamento da maioria das casas prisionais do país,
cuja violação desse princípio é por demais evidente.
Destaque-se
o parágrafo único desse artigo que diz:
Todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição.
Neste
particular, consolida-se o alcance profundo na organização e
funcionamento do estado, além de dar base às práticas de
democracia direta, tais como as experiências de orçamento
participativo, já exercidas no período anterior, em escala menos
conhecida e reconhecida, e que foram impulsionadas, mais fortemente e
não exclusivamente, a partir dos governos municipais do Partido dos
Trabalhadores (PT), as consultas populares e outras, também
previstas e já regulamentadas, embora sua aplicação tenha sido
mais reduzida, tais como o plebiscito e o referendo (Art. 14, CF/88).
As
políticas de transferência de renda, hoje bastante ampliadas e que
promoveram a retirada de milhões de brasileiros dos níveis de
pobreza extrema, nos últimos anos, têm sua base constitucional
elencada no Artigo
3º, inciso III - erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais,
antecedido de dois outros, a saber: I – construir uma sociedade
livre, justa e solidária e II – garantir o desenvolvimento
nacional.
Isto
sem falar nos artigos 5º, 6º e 7º, a que aludi anteriormente,
quando mencionei os direitos e garantias individuais, os direitos
sociais e os direitos dos trabalhadores rurais e urbanos, malgrado a
manutenção de alguma diferenciação, no caso, em relação às
empregadas domésticas, hoje em processo de redução, pela aprovação
de recente emenda constitucional, em fase de regulamentação
legislativa.
Com
referência aos direitos sociais deve-se mencionar o conceito de
seguridade social, articulando as políticas de natureza
previdenciária, de saúde e de assistência social.
Certamente
que, passada a primeira fase da promulgação, muitas das disposições
relativas ao tema previdenciário foram objeto de mudanças, com as
contínuas emendas constitucionais, que introduziram alterações
significativas, restringindo benefícios e direitos antes alcançados.
No
que diz respeito à saúde, a conquista do Sistema Único de Saúde,
com todas as suas debilidades de implantação efetiva, representou
um avanço considerável na implantação de efetivas políticas
públicas, orientadas pelos princípios norteadores da
universalização, da descentralização e da participação da
comunidade na sua gestão, em todos os níveis da admistração
pública, cujos exemplos são os conselhos locais, municipais,
estaduais e nacional, além das periódicas conferências nacionais.
Tais
avanços não obscurem o fato objetivo de que o sistema único de
saúde enfrenta sérios problemas, sejam de ordem administrativa,
financeira, de infra-estrutura e de recursos humanos, sobretudo em
regiões mais distantes dos centros urbanos, sem falar na
concentração de serviços de saúde nesses últimos, o que gera a
chamada ambulancioterapia.
Na
educação foi importante a definição dos percentuais mínimos que
os entes governamentais devem investir, o seu caráter universal,
laico, a liberdade de cátedra e a gratuidade nos estabelecimentos
públicos, embora o passivo nessa área ainda seja muito grande, quer
no que se refere aos indicadores de qualidade do ensino, quer no que
se refere à remuneração d@s
trabalhador@s
na área da educação (professor@s,
funcionári@s e outr@s
profissionais), especialmente, em relação a esse segundo aspecto,
pelo não cumprimento, em boa parte dos estados e municípios do
país, da lei federal que instituiu o Piso Nacional do Magistério.
Seria
cansativo fazer um passeio panorâmico sobre todo o texto
constitucional, bastando indicar sua necessária leitura e seu
cotejamento com as conquistas ou não até aqui realizadas.
Deve-se
analisar o período relativamente curto de sua vigência, as mudanças
conjunturais no plano da política e da economia internacional, as
crises econômicas, e as próprias mudanças dentro do país, que
impactaram positiva ou negativamente, o curso da realização das
promessas constitucionais.
Este
período, embora historicamente curto, é o maior de vigência de uma
constituição democrática no período republicano, excluída a
primeira, de 1891, haja vista que esta fora produto de uma eleição
da qual estavam excluídos de participação os analfabetos e as
mulheres, num contingente que superava, talvez, bem mais de 70% dos
eleitores e eleitoras da época.
O
processo constituinte, deflagrado em 1986, com a Constituição
promulgada em 1988, teve desdobramentos nos estados, com as
Constituições estaduais e, nos municípios, com as suas respectivas
Leis Orgânicas, derivando para todo o conjunto de normas
infra-constitucionais.
Ao
se fazer esta breve avaliação, pretende-se dar ênfase ao caráter
democrático da elaboração e do texto da constituição vigente e
compreender que muitas das conquistas e direitos econômicos,
sociais, políticos e culturais, hoje em voga, resultaram da ação
de milhões e milhões de brasileiros e brasileiras.
Foram
estes milhões que, naquele período, direta ou indiretamente,
através dos deputados e senadores constituintes, atuaram para a sua
aprovação, dando por superado _ ainda que carregando elementos do
passado – o período do regime militar e muitas das históricas
mazelas de restrições a direitos já universalmente consagrados e
por aqui não garantidos aos cidadãos e cidadãs do Brasil.
Com
este enfoque, também se pretende mitigar a tendência, sempre
presente entre nós, de realçar as ações de lideranças políticas,
que se elevam acima do povo e agem como seus protetores e condutores,
num indisfarçável culto à personalidade. Não se quer, por outro
lado, negar o papel das personalidades, que também assumem
relevância histórica e devem ser avaliados com justeza.
Penso
que muitas das ações desenvolvidas pelos governos a ou b,
frequentemente, não são uma decisão pessoal ou de seu grupo
político, mas a colocação em prática de princípios e mandamentos
já estatuídos na carta maior do país, combinados com as pressões
populares pelo seu cumprimento, embora se possa ver, neste ou naquele
governo, sinais mais evidentes de compromisso em levá-los à
prática, com mais amplitude e profundidade, talvez – aí sim –
diferenciando-os, inclusive quando da apresentação de propostas de
mudança constitucional.
De
qualquer modo, ainda há muito por avançar em direção aos
objetivos fundamentais definidos pela atual Constituição e para
além deles. E isto, necessariamente, deverá ser obra coletiva.