sábado, 5 de outubro de 2013

CONSTITUIÇÃO - 25 ANOS



Gilmar de Lima Martins


Hoje, 05 de outubro, a Constituição Federal completa 25 anos de sua promulgação, ocorrida em 1988.
Tenho comigo que os eventos realizados no país, a exceção dos promovidos pela Ordem dos Advogados do Brasil, salvo melhor juízo, estão aquém da importância que se deva dar ao acontecido.
A despeito de todas as eventuais críticas que – aqui ou ali – são feitas às suas limitações ou impropriedades, a Constituição representou um avanço inequívoco na institucionalização da democracia no Brasil.
A abordagem que trago, em caráter sintético e superficial, será menos jurídica e mais política.
Assim, considero necessário um balanço da Constituição, a partir do seu texto originalmente promulgado, sem deixar de levar em conta as mais de 70 emendas por ela sofridas nesse período.
Antes, é preciso afirmar-se que o processo constituinte, inciado com a eleição dos deputados e senadores em 1986, e a constituição resultante, em 1988, se deram em um dos ambientes mais amplamente democráticos nas condições históricas brasileiras, mesmo que sob a vigência de uma vigorosa legislação oriunda da ditadura militar, conhecida como o chamado entulho autoritário.
Dessa legislação, afirma-se, como seu exemplo mais eloquente, a permanência de uma lei de anistia que, inaceitavelmente confirmada no plenário do Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que se fez em quase todos os países do mundo e da América Latina, em particular, impossibiliitou a apuração, o julgamento e a condenação dos agentes do estado responsáveis pelos crimes de tortura, morte e desaparecimentos praticados pelo regime militar.
Não por acaso, neste ano de 2013, após o desaparecimento de pedreiro Amarildo, na favela da Rocinha, trazido à tona no curso das mobilizações populares de junho e pela ampla repercussão do caso, concluído o inquérito policial, restaram indiciados outros policiciais, que atuavam na Unidade de Polícia Pacificadora do estado do Rio de Janeiro, por crime de tortura, morte e desaparecimento do operário.
Desse modo, comprova-se o que já se sabia: a persistência de práticas criminosas, por conta dos aparatos de segurança policial, sobretudo contra os mais pobres, como sub-produto do regime autoritário e pela incapacidade demonstrada, pelos governos civis que lhe sucederam, de enfrentar o grave problema da política de segurança pública no país e do sistema penitenciário brasileiro sob viés da democracia.
Se, internamente, as condicionantes principais do processo constitutuinte e da nova constituição devem ser creditadas à luta pela redemocratização do país, à afirmação e ampliação dos direitos e garantias individuais, à constitucionalização dos direitos trabalhistas e sociais e à democratização das instituições estatais, de modo a permitir seu maior controle social, externamente, o mundo ainda vivia sob o clima de guerra fria e da oposição entre dois sistemas, o capitalismo e o socialismo real.
Este duplo e simultâneo condicionamento permitiu a elaboração da constituição, como já referido, em um ambiente bastante favorável à inserção de conquistas democráticas no seu texto, ambiente este construído no processo mesmo de elaboração, inédito no país, de montagem de sub-comissões temáticas, com audiências públicas pelo país, e com considerável participação de entidades e movimentos sociais na apresentação de propostas.
Em que pese a defesa de uma assembleia constituinte exclusiva, exercida por alguns juristas, lideranças políticas e partidos à época, penso que o conteúdo da constituição, elaborado pelo congresso constituinte eleito em 1986, legou um texto amplo, plural e profundo, responsável por inegáveis e, espera-se, irrevogáveis conquistas democráticas nos planos político, econômico, social e cultural.
Considerando-se a classificação de que os direitos e garantias individuais, associados aos direitos sociais, configuram os chamados direitos de primeira e segunda geração, a Constituição inovou, indo além deles _ ratificando-os e ampliando-os _ com os chamados direitos de terceira geração, referidos pelos direitos transindividuais e coletivos, de que são exemplos os dispositivos que inscreveram como direitos constitucionais os temas relacionados às relações de consumo, às questões ambientais, entre outras.
Para não alongar este texto, registro os artigos iniciais do texto constitucional, que tratam dos princípios fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos.
Com relação aos princípios fundamentais, o Art 1º estabelece:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Sem a pretensão de discutir cada um desses fundamentos, cabe salientar a força do inciso III, que tem servido de suporte, inclusive, para ações judiciais as mais diversas, notadamente as ações penais, embora _ cabe a observação – levado ao seu extremo, talvez implicasse em fechamento da maioria das casas prisionais do país, cuja violação desse princípio é por demais evidente.
Destaque-se o parágrafo único desse artigo que diz:
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Neste particular, consolida-se o alcance profundo na organização e funcionamento do estado, além de dar base às práticas de democracia direta, tais como as experiências de orçamento participativo, já exercidas no período anterior, em escala menos conhecida e reconhecida, e que foram impulsionadas, mais fortemente e não exclusivamente, a partir dos governos municipais do Partido dos Trabalhadores (PT), as consultas populares e outras, também previstas e já regulamentadas, embora sua aplicação tenha sido mais reduzida, tais como o plebiscito e o referendo (Art. 14, CF/88).
As políticas de transferência de renda, hoje bastante ampliadas e que promoveram a retirada de milhões de brasileiros dos níveis de pobreza extrema, nos últimos anos, têm sua base constitucional elencada no Artigo 3º, inciso III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, antecedido de dois outros, a saber: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária e II – garantir o desenvolvimento nacional.
Isto sem falar nos artigos 5º, 6º e 7º, a que aludi anteriormente, quando mencionei os direitos e garantias individuais, os direitos sociais e os direitos dos trabalhadores rurais e urbanos, malgrado a manutenção de alguma diferenciação, no caso, em relação às empregadas domésticas, hoje em processo de redução, pela aprovação de recente emenda constitucional, em fase de regulamentação legislativa.
Com referência aos direitos sociais deve-se mencionar o conceito de seguridade social, articulando as políticas de natureza previdenciária, de saúde e de assistência social.
Certamente que, passada a primeira fase da promulgação, muitas das disposições relativas ao tema previdenciário foram objeto de mudanças, com as contínuas emendas constitucionais, que introduziram alterações significativas, restringindo benefícios e direitos antes alcançados.
No que diz respeito à saúde, a conquista do Sistema Único de Saúde, com todas as suas debilidades de implantação efetiva, representou um avanço considerável na implantação de efetivas políticas públicas, orientadas pelos princípios norteadores da universalização, da descentralização e da participação da comunidade na sua gestão, em todos os níveis da admistração pública, cujos exemplos são os conselhos locais, municipais, estaduais e nacional, além das periódicas conferências nacionais.
Tais avanços não obscurem o fato objetivo de que o sistema único de saúde enfrenta sérios problemas, sejam de ordem administrativa, financeira, de infra-estrutura e de recursos humanos, sobretudo em regiões mais distantes dos centros urbanos, sem falar na concentração de serviços de saúde nesses últimos, o que gera a chamada ambulancioterapia.
Na educação foi importante a definição dos percentuais mínimos que os entes governamentais devem investir, o seu caráter universal, laico, a liberdade de cátedra e a gratuidade nos estabelecimentos públicos, embora o passivo nessa área ainda seja muito grande, quer no que se refere aos indicadores de qualidade do ensino, quer no que se refere à remuneração d@s trabalhador@s na área da educação (professor@s, funcionári@s e outr@s profissionais), especialmente, em relação a esse segundo aspecto, pelo não cumprimento, em boa parte dos estados e municípios do país, da lei federal que instituiu o Piso Nacional do Magistério.
Seria cansativo fazer um passeio panorâmico sobre todo o texto constitucional, bastando indicar sua necessária leitura e seu cotejamento com as conquistas ou não até aqui realizadas.
Deve-se analisar o período relativamente curto de sua vigência, as mudanças conjunturais no plano da política e da economia internacional, as crises econômicas, e as próprias mudanças dentro do país, que impactaram positiva ou negativamente, o curso da realização das promessas constitucionais.
Este período, embora historicamente curto, é o maior de vigência de uma constituição democrática no período republicano, excluída a primeira, de 1891, haja vista que esta fora produto de uma eleição da qual estavam excluídos de participação os analfabetos e as mulheres, num contingente que superava, talvez, bem mais de 70% dos eleitores e eleitoras da época.
O processo constituinte, deflagrado em 1986, com a Constituição promulgada em 1988, teve desdobramentos nos estados, com as Constituições estaduais e, nos municípios, com as suas respectivas Leis Orgânicas, derivando para todo o conjunto de normas infra-constitucionais.
Ao se fazer esta breve avaliação, pretende-se dar ênfase ao caráter democrático da elaboração e do texto da constituição vigente e compreender que muitas das conquistas e direitos econômicos, sociais, políticos e culturais, hoje em voga, resultaram da ação de milhões e milhões de brasileiros e brasileiras.
Foram estes milhões que, naquele período, direta ou indiretamente, através dos deputados e senadores constituintes, atuaram para a sua aprovação, dando por superado _ ainda que carregando elementos do passado – o período do regime militar e muitas das históricas mazelas de restrições a direitos já universalmente consagrados e por aqui não garantidos aos cidadãos e cidadãs do Brasil.
Com este enfoque, também se pretende mitigar a tendência, sempre presente entre nós, de realçar as ações de lideranças políticas, que se elevam acima do povo e agem como seus protetores e condutores, num indisfarçável culto à personalidade. Não se quer, por outro lado, negar o papel das personalidades, que também assumem relevância histórica e devem ser avaliados com justeza.
Penso que muitas das ações desenvolvidas pelos governos a ou b, frequentemente, não são uma decisão pessoal ou de seu grupo político, mas a colocação em prática de princípios e mandamentos já estatuídos na carta maior do país, combinados com as pressões populares pelo seu cumprimento, embora se possa ver, neste ou naquele governo, sinais mais evidentes de compromisso em levá-los à prática, com mais amplitude e profundidade, talvez – aí sim – diferenciando-os, inclusive quando da apresentação de propostas de mudança constitucional.
De qualquer modo, ainda há muito por avançar em direção aos objetivos fundamentais definidos pela atual Constituição e para além deles. E isto, necessariamente, deverá ser obra coletiva.